“Gandhi se casou menino. Foi casado menino. O contrato, foram os grandes que assinaram. Os dois nem sabiam direito o que estava acontecendo, ainda n\u00e3o haviam completado 10 anos de idade, estavam interessados em brincar. Ningu\u00e9m era culpado: todo mundo estava sendo levado de rold\u00e3o pelas engrenagens dessa m\u00e1quina chamada sociedade, que tudo ignora sobre a felicidade e vai moendo as pessoas nos seus dentes. Os dois passaram o resto da vida se arrastando, pesos enormes, cada um fazendo a infelicidade do outro.<\/p>\n
Voc\u00eas dir\u00e3o que felizmente esse costume nunca existiu entre n\u00f3s: obrigar crian\u00e7as que nada sabem a entrar por caminhos nos quais ter\u00e3o de andar pelo resto da vida \u00e9 coisa muito cruel e… burra! Al\u00e9m disso j\u00e1 existe entre n\u00f3s rem\u00e9dio para casamento que n\u00e3o d\u00e1 certo.<\/p>\n
Antigamente, quando se queria dizer que uma decis\u00e3o n\u00e3o era grave e podia ser desfeita, dizia-se: “isso n\u00e3o \u00e9 casamento!”. Naquele tempo, sim, casamento era decis\u00e3o irremedi\u00e1vel, para sempre, at\u00e9 que a morte os separasse, eterna comunh\u00e3o de bens e comunh\u00e3o de males. Mas agora os casamentos fazem-se e desfazem-se at\u00e9 mesmo contra a vontade do Papa, e os dois ficam livres para come\u00e7ar tudo de novo…<\/p>\n
Pois dentro de poucos dias vai acontecer com nossos adolescentes coisa igual ou pior do que aconteceu com o Gandhi e a mulher dele, e ningu\u00e9m se horroriza, ningu\u00e9m grita, os pais at\u00e9 ajudam, concordam, empurram, fazem press\u00e3o, o filho n\u00e3o quer tomar a decis\u00e3o, refuga, est\u00e1 com medo. “Tomar uma decis\u00e3o para o resto da minha vida, meu pai! N\u00e3o posso agora!” e o pai e a m\u00e3e perdem o sono, pensando que h\u00e1 algo errado com o menino ou a menina, e invocam o aux\u00edlio de psic\u00f3logos para ajudar…<\/p>\n
Est\u00e1 chegando para muitos o momento terr\u00edvel do vestibular, quando v\u00e3o ser obrigados por uma m\u00e1quina, do mesmo jeito como o foram Gandhi e Casturbai (era esse o nome da menina), a escrever num espa\u00e7o em branco o nome da profiss\u00e3o que v\u00e3o ter.<\/p>\n
Do mesmo jeito n\u00e3o: a situa\u00e7\u00e3o \u00e9 muito mais grave. Porque casar e descasar s\u00e3o coisas que se resolvem r\u00e1pido. \u00c0s vezes, antes de se descasar de uma ou de um, a pessoa j\u00e1 est\u00e1 com uma outra ou um outro. Mas, com a profiss\u00e3o n\u00e3o tem jeito de fazer assim. Pra casar, basta amar.<\/p>\n
Mas na profiss\u00e3o, al\u00e9m de amar tem de saber. E o saber leva tempo pra crescer.<\/p>\n
A dor que os adolescentes enfrentam agora \u00e9 que, na verdade, eles n\u00e3o t\u00eam condi\u00e7\u00f5es de saber o que \u00e9 que eles amam. Mas a m\u00e1quina os obriga a tomar uma decis\u00e3o para o resto da vida, mesmo sem saber.<\/p>\n
Saber que a gente gosta disso e gosta daquilo \u00e9 f\u00e1cil. O dif\u00edcil \u00e9 saber qual, dentre todas, \u00e9 aquela de que a gente gosta supremamente. Pois, por causa dela, todas as outras ter\u00e3o de ser abandonadas. A isso que se d\u00e1 o nome de “voca\u00e7\u00e3o”; que vem do latim, vocare, que quer dizer “chamar”. \u00c9 um chamado, que vem de dentro da gente, o sentimento de que existe alguma coisa bela, bonita e verdadeira \u00e0 qual a gente deseja entregar a vida.<\/p>\n
Entregar-se a uma profiss\u00e3o \u00e9 igual a entrar para uma ordem religiosa. Os religiosos, por amor a Deus, fazem votos de castidade, pobreza e obedi\u00eancia. Pois, no momento em que voc\u00ea escrever a palavra fat\u00eddica no espa\u00e7o em branco, voc\u00ea estar\u00e1 fazendo tamb\u00e9m os seus votos de dedica\u00e7\u00e3o total \u00e1 sua ordem. Cada profiss\u00e3o \u00e9 uma ordem religiosa, com seus papas, bispos, catecismos, pecados e inquisi\u00e7\u00f5es.<\/p>\n
Se voc\u00ea disser que a decis\u00e3o n\u00e3o \u00e9 t\u00e3o s\u00e9ria assim , que o que est\u00e1 em jogo \u00e9 s\u00f3 o aprendizado de um of\u00edcio para se ganhar a vida e, possivelmente, ficar rico, eu posso at\u00e9 dizer: “Tudo bem! S\u00f3 que fico com d\u00f3 de voc\u00ea! Pois n\u00e3o existe coisa mais chata que trabalhar s\u00f3 para ganhar dinheiro.”<\/p>\n
\u00c9 o mesmo que dizer que, no casamento, amar n\u00e3o importa. Que o que importa \u00e9 se o marido \u2014 ou a mulher \u2014 \u00e9 rico. Imagine-se agora, nessa situa\u00e7\u00e3o: voc\u00ea \u00e9 casado ou casada, n\u00e3o gosta do marido ou da mulher, mas \u00e9 obrigado a, diariamente, fazer carinho, agradar e fazer amor. Pode existir coisa mais terr\u00edvel que isso? Pois \u00e9 a isso que est\u00e1 obrigada uma pessoa, casada com uma profiss\u00e3o sem gostar dela. A situa\u00e7\u00e3o \u00e9 mais terr\u00edvel que no casamento, pois no casamento sempre existe o recurso de umas infidelidades marginais. Mas o profissional, pobrezinho, gozar\u00e1 do seu direito de infidelidade com que outra profiss\u00e3o?<\/p>\n
N\u00e3o fique muito feliz se o seu filho j\u00e1 tem id\u00e9ias claras sobre o assunto. Isso n\u00e3o \u00e9 sinal de superioridade. Significa, apenas, que na mesa dele h\u00e1 um prato s\u00f3. Se ele s\u00f3 tem nabos cozidos para comer, \u00e9 claro que a decis\u00e3o j\u00e1 est\u00e1 feita: comer\u00e1 nabos cozidos e engordar\u00e1 com eles. A dor e a indecis\u00e3o v\u00eam quando h\u00e1 muitos pratos sobre a mesa e s\u00f3 se pode escolher um.<\/p>\n
Um conselho aos pais e aos adolescentes: n\u00e3o levem muito a s\u00e9rio esse ato de colocar a profiss\u00e3o naquele lugar terr\u00edvel. Aceitem que \u00e9 muito cedo para uma decis\u00e3o t\u00e3o grave. Considerem que \u00e9 poss\u00edvel que voc\u00eas, daqui a um ou dois anos, mudem de id\u00e9ia. Eu mudei de id\u00e9ia v\u00e1rias vezes, o que me fez muito bem. Se for necess\u00e1rio, comecem de novo. N\u00e3o h\u00e1 pressa. Que diferen\u00e7a faz receber o diploma um ano antes ou um ano depois?<\/p>\n
Em tudo isso o que causa a maior ansiedade n\u00e3o \u00e9 nada s\u00e9rio: \u00e9 aquela sensa\u00e7\u00e3o boba que domina pais e filhos de que a vida \u00e9 uma corrida e que \u00e9 preciso sair correndo na frente para ganhar. D\u00e1 uma afli\u00e7\u00e3o danada ver os outros come\u00e7ando a corrida, enquanto a gente fica para tr\u00e1s.<\/p>\n
Mas a vida n\u00e3o \u00e9 uma corrida em linha reta. Quando se come\u00e7a a correr na dire\u00e7\u00e3o errada, quanto mais r\u00e1pido for o corredor, mais longe ele ficar\u00e1 do ponto de chegada. Lembrem-se daquele maravilhoso aforismo de T. S. Eliot: “Num pa\u00eds de fugitivos os que andam na dire\u00e7\u00e3o contr\u00e1ria parecem estar fugindo.”<\/p>\n
Assim, Raquel, n\u00e3o se aflija. A vida \u00e9 uma ciranda com muitos come\u00e7os.<\/p>\n
Coloque l\u00e1 a profiss\u00e3o que voc\u00ea julgar a mais de acordo com o seu cora\u00e7\u00e3o, sabendo que nada \u00e9 definitivo. Nem o casamento. Nem a profiss\u00e3o. E nem a pr\u00f3pria vida…”<\/p>\n